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Ministério da Saúde lança manual de assistência ao aborto com dados distorcidos

Por Cláudia Collucci | Folhapress

Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil

O Ministério da Saúde lançou um guia sobre a assistência nos casos de aborto em que distorce interpretações normativas e, em alguns casos, baseia-se em avaliações morais, sem respaldo científico, para orientar condutas clínicas.
Nesta quarta (15), a Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras e a Rede Médica pelo Direito de Decidir emitiram nota de repúdio conjunta solicitando revogação do manual. Para elas, o documento cria barreiras de acesso às situações já previstas em lei, ou seja, para salvar a vida da gestante, se a gravidez resultar de estupro ou em caso de feto anencefálico (por decisão do Supremo Tribunal Federal).
Em 2020, o Ministério da Saúde decidiu alterar uma outra portaria polêmica que trazia regras para atendimento a mulheres que buscam aborto nos casos previstos em lei que, para especialistas e entidades na área de saúde, eram uma forma de intimidar mulheres que buscam o procedimento.
Procurado pela reportagem na tarde desta quarta (15), o Ministério da Saúde disse que vai realizar audiência pública para ouvir a sociedade e especialistas sobre o conteúdo do guia.
As redes médicas que assinam a nota de repúdio apontam ao menos 14 distorções no novo documento do ministério, entre elas, considerar "todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido" (...).
"O que o Ministério da Saúde quer dizer com isso? Que todos os abortos legais serão investigados pela polícia? Quem será investigado no caso de um aborto terapêutico? [para salvar a vida ou a saúde de uma mulher grávida] O médico? A mulher? E nos casos de gravidez decorrente de estupro?", questionam as entidades.
Para as redes médicas, dizer que a polícia vai investigar casos que já têm amparo legal para o aborto "é tortura psíquica do Estado brasileiro, além de flagrante quebra do direito constitucional da intimidade, privacidade e do sigilo profissional", além de pôr em risco as mulheres, "pois as afastará do cuidado em saúde necessário".
O documento do ministério também orienta que os profissionais de saúde notifiquem às autoridades casos de estupro que resultem em interrupção da gestação. Ocorre que já existem portarias e diretrizes que só permitem essa notificação à polícia ou à Justiça com o consentimento da mulher vítima.
Do contrário, a conduta pode configurar violação do sigilo profissional, hipótese em que os profissionais incorrem em crime previsto no artigo 154 do Código Penal.
"Para a oferta do aborto legal a vítimas de violência sexual, não se deve condicionar o cuidado em saúde a nenhuma comunicação externa ao sistema de justiça ou a polícias. A função dos profissionais da saúde é cuidar, não investigar, nem dar início a qualquer investigação", dizem as entidades.
A justificativa é que a comunicação do crime à polícia, sem anuência da vítima, pode colocá-la em nova situação de risco. Estudos mostram que a maioria dos casos de violência sexual é praticada por pessoas próximas às meninas e mulheres.
O documento também afirma que "do ponto de vista médico, não há sentido clínico na realização do aborto com excludente de ilicitude [aborto legal] em gestações que ultrapassem 21 semanas e seis dias".
Como argumento, cita um caso, sem qualquer referência, de um bebê com 212 g que teria sobrevivido em Cingapura. "Então esse pode ser o peso atual da viabilidade fetal, após avaliado por especialistas (...)", diz trecho do documento do ministério.
No entanto, não há na lei brasileira qualquer limitação da idade gestacional à realização do aborto legal. "Assim, o Ministério da Saúde não pode limitar o que ali não restringe, sob pena de gerar omissão de socorro às mulheres e meninas", dizem as redes médicas.
Segundo as entidades, o que determina o aborto legal não é a idade gestacional, mas sim estar dentro das hipóteses autorizadas pelo direito brasileiro. Lembram também que há casos de malformações incompatíveis com a vida em que o diagnóstico somente é possível em idades gestacionais mais avançadas, e que isso não impede o acesso ao aborto.
Há trechos do documento que, de acordo com as entidades, são discriminatórios. Um exemplo é quando o guia diz que a "experiência mostra que a possibilidade do abortamento se repetir é maior justamente entre mulheres que acham que não estarão expostas à gravidez nos meses ou anos seguintes, e, por isso mesmo, não se protegem adequadamente".
"Não há qualquer referência a estudos científicos ou bases normativas para sustentar a informação de que mulheres que passaram por um aborto não se protegem adequadamente", dizem as redes médicas.
Outro ponto polêmico é sobre o uso da telemedicina para o aborto previsto em lei. "A fim de que se possa proteger a integridade física das mulheres e zelar pela promoção da vida, o Ministério da Saúde compreende ser ilegal e, portanto, não recomendável, o abortamento via telessaúde", diz o manual.
Porém, a OMS (Organização Mundial da Saúde) e a Figo (Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia) endossam a segurança e recomendam o uso da telemedicina para garantir o acesso ao aborto nas primeiras semanas de gestação, em que ele pode ser feito em casa, com o uso de medicamento. O Brasil é o único país da América Latina e um dos únicos do mundo a restringir o uso do misoprostol aos hospitais.
De acordo com a OMS e a Figo, a telemedicina para casos de aborto é segura e os eventos adversos são "extremamente raros". Além disso, defendem que a tecnologia aumenta o acesso, especialmente nos países de renda média e baixa, atende às preferências de muitas mulheres em relação à privacidade e ao cuidado livre de estigma.
Para as entidades, não é possível compreender por que o Ministério da Saúde considera a Figo uma referência para parte da recomendação técnica e clínica de assistência ao aborto, mas ignora a integralidade das recomendações da federação.
No manual, o Ministério da Saúde também faz recomendações já tidas como obsoletas pela OMS há mais de dez anos, como o uso de curetagem uterina. A orientação da OMS é substituí-la pela aspiração manual ou elétrica ou ainda pelo tratamento medicamentoso.
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