“Bravo, Celsinho!” Essa foi a manchete do jornal Integração, de Tatuí (SP), em 18 de junho de 1989, ao noticiar que o Senado confirmara o nome de José Celso de Mello Filho para compor o Supremo Tribunal Federal.
Para os conterrâneos de Tatuí, localizada a 131 quilômetros da capital paulista, quem vai se aposentar na próxima terça-feira (13) não é apenas um membro do STF. É o “ministro tatuiano”, como o decano de 74 anos é conhecido na cidade.
A aposentadoria alimentou a expectativa de seu retorno definitivo à cidade. “Preciso cuidar-me e concluir o tratamento médico. Essa é, no momento, a minha prioridade”, diz Celso de Mello. Ele antecipou a aposentadoria por recomendação médica, fez uma cirurgia, mas prefere não falar a respeito.
Em 2013, o advogado José Rubens de Alencar Lincoln reformou seu escritório em Tatuí pensando em dividi-lo com o amigo de infância. A PEC da Bengala —que fixou em 75 anos a aposentadoria compulsória dos juízes dos tribunais superiores, adiou o projeto. Agora, Mello vai doar livros de sua coleção para o escritório do advogado.
Em toda a sua trajetória, o ministro manteve Tatuí como referência. Recebia advogados, promotores, magistrados e amigos no Café Canção, na praça da Matriz, onde tomava sorvete ou Schweppes com suco de limão. Nas visitas à cidade, costumava se reunir com lideranças políticas locais e autoridades municipais.
Nos fins de semana, dispensava o carro oficial em Brasília. Quando viajava a São Paulo, pagava as passagens de avião.
Seu Jorginho (Jorge Luiz Soares de Mello, 70), taxista de Tatuí, buscava e levava o ministro ao aeroporto de Congonhas. O ministro pagava a viagem de retorno, para o condutor não ter prejuízo. “É uma pessoa muito legal”, diz Jorginho. Essa correção e austeridade são tidas como características que o distinguem.
O ministro reservava “furos”, notícias exclusivas, para o amigo José Reiner Fernandes, editor do Integração. O jornal irá perder seu “correspondente” em Brasília.
No mensalão, quando se sentiu pressionado antes de votar a favor dos embargos infringentes —que deram a réus a chance de novo julgamento em alguns crimes— Celso de Mello enviou, em primeira mão, seu desabafo para o editor do Integração, que estava na Suíça.
“Nunca presenciei um comportamento tão ostensivo dos meios de comunicação sociais buscando, na verdade, pressionar e virtualmente subjugar a consciência de um juiz”, afirmou o decano.
Quando foi indicado ministro da Justiça de Bolsonaro, Sergio Moro enviou essa confirmação por mensagem para o WhatsApp de Celso de Mello. O diálogo só foi publicado no Integração.
Em novembro de 2019, quando estava em julgamento a prisão em segunda instância, Celso de Mello foi alvo de ataques pela internet. Uma mensagem chegou a sugerir que o ministro não aparecesse mais na cidade.
O jornal Integração registrou que “em Tatuí existe uma ‘milícia digital’, aliada ao mais odioso pensamento de extrema direita”. O editor Fernandes atribui a iniciativa a grupos bolsonaristas que pretendiam “proclamar” uma “condenação prematura” do ministro ao “exílio”.
“Em Tatuí, a população nunca soube distinguir um ministro do STF de um ministro do Poder Executivo. Na medida do possível, ele interferia pela cidade em suas reivindicações relevantes”, diz Fernandes, explicando que Celso de Mello acompanhava de perto a vida local. O decano obteve do então secretário estadual da Justiça Luiz Antônio Marrey verba para a construção do novo fórum da cidade.
Fernandes levou o ministro para uma visita de surpresa a uma delegacia, em situação precária. No caminho, Celso de Mello comentou: “Acho que esta é a primeira vez que um ministro do STF visita uma delegacia”.
Fernandes diz que o serviço de documentação do STF pediu para o jornal enviar cópias de reportagens sobre Celso de Mello.
O ministro é filho de professores. Seu pai era diretor de colégio e muito rígido na educação do menino. Amigo do ministro desde os oito anos de idade, Lincoln arrastava Celso de Mello para traquinagens, como “apertar a campainha das casas à noite e sair correndo”, conta.
Lincoln diz que bebia pinga e fumava. “Celso, não. Mas era divertido e brincalhão. Eu era o chefe do bando”. “Jogávamos futebol em terrenos baldios. Fui péssimo jogador, Celso conseguia ser pior do que eu nas peladas. É a pessoa mais leal e honesta que conheci.”
Celso de Mello estudou piano e teoria musical no conservatório de Tatuí. Tocou em uma banda da cidade.
“Eu tocava sax tenor. Também tocava fagote, especialmente no período em que morei, estudei e concluí o curso colegial nos EUA, e um pouco de piano”, diz Celso de Mello. Ele gosta de música clássica e jazz.
Membro da turma de 1969 da Faculdade de Direito da USP, o ministro foi tenor no Coral Acadêmico XI de Agosto. “Cantava muito bem”, diz Eulalia Braga Smith, organizadora das festas da turma.
Nos anos 1960, o coral, que não cobrava cachê, se apresentava regularmente na TV Record, no programa “Corte Rayol Show”, de Renato Corte Real e Agnaldo Rayol. Era o tempo dos festivais. Celso de Mello aparece em fotos do grupo com Agnaldo Rayol e Roberto Carlos.
O coral visitou várias cidades —inclusive Tatuí, onde se apresentou no Clube Recreativo, na Praça da Matriz. Na posse do ministro no STF, no final da cerimônia um grupo do coral cantou no tribunal em sua homenagem.
Na faculdade, seus colegas já vislumbravam o estilo barroco que o ministro adotaria em seus longos votos. Celso lia muito. Seu objetivo era estudar para ser promotor. Ingressou no Ministério Público de São Paulo em 1970. Foi o primeiro colocado no concurso. Promotor público de Osasco (SP), protestou, em discurso na inauguração do fórum, contra as condições desumanas da cadeia local.
O advogado Márcio Cammarosano, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo, diz que Celso era muito aplicado e compenetrado. “Ele se sentava nas primeiras fileiras e preparava apostilas para os alunos.”
Por causa de seu sotaque meio arrastado, puxando os erres, ganhou na faculdade o apelido de “Tatuí”. Para a festa dos 50 anos da turma, Eulália Braga Smith mandou confeccionar um crachá de metal, com o nome “Tatuí” gravado. Teve a aprovação do ministro.
O advogado Airton Soares, também colega de turma, foi surpreendido pela indicação de Celso para o Supremo. “No STF, Celso de Mello vivenciava os votos que dava. Era ele quem fazia os votos”, diz Soares.
O ministro escrevia à mão suas decisões. Às vezes fazia mudanças durante a sessão. Nunca aceitou juiz auxiliar em seu gabinete. “Não tem sentido convocar um juiz para atuar como assessor de ministro”, afirmou, em 2009.
“Convivemos muito bem. Ele não era da militância estudantil”, lembra Soares.
Na capital paulista, Celso morou durante cinco anos na Pensão do Abelardo, na rua Condessa de São Joaquim, na Bela Vista. O quarto era pequeno, para duas pessoas, com direito a três refeições. José Dirceu, que viria a ser ministro-chefe da Casa Civil no governo Lula, também morava lá.
Segundo o decano, eles ficavam em alas diferentes e raramente se encontravam. De madrugada, o local recebia visitas de agentes do extinto Deops à procura de estudantes subversivos.
O promotor de Justiça aposentado Airton Florentino de Barros, contemporâneo de Celso de Mello no Ministério Público de São Paulo, foi seu vizinho de sala no Fórum João Mendes. Ele diz que era comum, nas sextas-feiras, encontrar o ministro trabalhando na biblioteca, no 16º andar.
“Aí, o tirávamos de lá, para tomar um café na nossa sala. Ele continuava sendo o ‘Zé Celso’, que mantinha o debate elegante e democrático”, diz Barros.
Nomeado pelo presidente José Sarney (PMDB) para vaga aberta com a aposentadoria de Luiz Rafael Mayer no STF, Celso de Mello era o número dois na Consultoria-Geral da República, chefiada por Saulo Ramos, que avocou para si a paternidade da indicação.
Quando o PMDB negou a legenda para Sarney disputar o Senado, o político maranhense candidatou-se pelo Amapá. Houve impugnação e o caso acabou no STF. Sarney ganhou, mas a decisão não foi unânime.
Celso de Mello votou pela cassação da candidatura, supostamente para desmentir a Folha, que, na véspera, citara o seu nome como um dos votos certos a favor do ex-presidente.
No livro “Código da Vida”, Saulo Ramos escreveu que, por causa desse voto divergente, chamou Celso de “um juiz de merda”, bateu o telefone e nunca mais falou com ele.
O jornalista José Reiner Fernandes conta que o ministro comentou: “O doutor Saulo confundiu franqueza com fraqueza”.