Pressionado a pagar logo o auxílio emergencial aos trabalhadores informais, o governo tem pela frente desafios que vão além da localização de 15 milhões a 20 milhões de brasileiros que hoje estão completamente fora do radar dos gestores de políticas sociais. Mesmo para quem já recebe o Bolsa Família, tirar a megaoperação do papel não será simples e vai requerer planejamento e até distribuição de cédulas de dinheiro pelo País.
Nos últimos dias, o governo ficou na linha de tiro com a demora do presidente Jair Bolsonaro em sancionar a lei que cria o auxílio e assinar a Medida Provisória que libera imediatamente os R$ 98 bilhões para os pagamentos. Especialistas têm dito que o momento é de “jogar dinheiro pela janela o mais rápido possível” e “sem medo de errar”. No entanto, há obstáculos operacionais que, em experiências menos dramáticas e urgentes no passado, levaram mais de um mês para serem vencidos.
O Brasil tem um grande ativo, que é o Cadastro Único, uma ampla base de dados criada em 2001 e que concentra beneficiários de mais de 20 políticas sociais no País. São 74,4 milhões de brasileiros registrados no CadÚnico – o terço mais pobre da população brasileira. O banco de informações agora será um apoio estratégico na hora de fazer chegar o dinheiro às famílias mais vulneráveis. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estima que quase 82% do público do auxílio emergencial está no cadastro. Mesmo assim, há gente de fora.
Os problemas vão além do cadastro. O sociólogo Luis Henrique Paiva, ex-secretário Nacional de Renda de Cidadania e hoje pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica, explica que 70% dos beneficiários do Bolsa Família não têm conta e sacam o benefício em dinheiro. O valor médio não chega a R$ 200 por família – repasse que, durante três meses, será triplicado.
Com a inclusão de outros trabalhadores elegíveis ao auxílio emergencial, a folha do auxílio deve ser pelo menos cinco vezes maior que a do Bolsa Família. “É preciso reforçar a logística de distribuição de cédulas no País”, afirma.
O presidente da Caixa, Pedro Guimarães, disse em entrevista coletiva na tarde desta sexta-feira, 3, que o banco vai criar poupanças digitais para transferir os recursos aos beneficiários, mas não deu detalhes.
Procurado, o Banco Central informou que “entende que a quantidade de dinheiro em circulação é adequada para fazer frente aos desafios atuais e futuros” e que, desde o início da pandemia da covid-19, “atua e monitora o processo de fornecimento de cédulas e moedas junto à rede bancária para que não haja qualquer interrupção”. O BC não respondeu aos questionamentos sobre eventual reforço no envio de papel-moeda às regiões.
Paiva também demonstra preocupação com as cidades que eventualmente não contem com canal de pagamento – o que obrigaria os cidadãos a se deslocarem para resgatar o auxílio. Em dezembro de 2018, 377 municípios brasileiros não tinham atendimento bancário (nem por meio de caixa eletrônico) no País. A Caixa costuma firmar convênios com estabelecimentos para permitir os saques, mas, segundo o pesquisador, “sempre há um resíduo de 40 ou 50 cidades” que ficam alguns meses sem canal de pagamento.
O banco estatal deve anunciar o calendário dos pagamentos na semana que vem. Desde já, Paiva recomenda um escalonamento – do contrário, muita gente sairá de casa num único dia, contrariando as recomendações sanitárias para evitar aglomeração. “Não pode ser no mesmo dia, se não vai ser o dia de maior número de transmissões do coronavírus”, afirma. Ele disse entender que os brasileiros necessitam do dinheiro o quanto antes, mas é preciso agir com cautela. “É preciso combinar senso de urgência com senso de responsabilidade”, diz.
Nos últimos dias, economistas defenderam que houvesse um crédito imediato nos cartões dos beneficiários do Bolsa Família para começar imediatamente o pagamento do auxílio emergencial. Paiva, porém, ressalta que até essa iniciativa requer algum tempo de preparo. Ele conta que, quando ainda estava no governo em 2012, foram necessários dois meses para rodar com segurança a primeira folha do Benefício para Superação da Extrema Pobreza – complemento para famílias que, mesmo dentro do programa, ainda tinham renda abaixo de R$ 89 por pessoa ao mês.
O pesquisador Marcelo Medeiros, professor visitante na Universidade de Princeton, afirma que o Brasil teve tempo para se planejar antes da confirmação do primeiro caso da covid-19 no País, mas não optou por isso. “É um problema de falta de liderança e de falta de planejamento”, diz. Segundo ele, o governo deu vários sinais contraditórios, o que acabou confundindo a população sobre se ajuda viria ou não e de que forma. Ele destaca a necessidade de fazer o dinheiro chegar urgentemente à população.
Cadastro
Embora o CadÚnico seja um importante ativo do Brasil, a crise atual expôs lacunas ainda deixadas pela base, que reúne um terço dos brasileiros. Na vizinha Colômbia, o Sistema de Identificação de Potenciais Beneficiários de Programas Sociais (Sisbén, na sigla em espanhol) cobre praticamente 100% da população. Na França e nos Estados Unidos, também há bases de dados que alcançam boa parte dos cidadãos e, num momento de crise, podem servir de apoio no desenho de políticas públicas.
No Brasil, o CadÚnico tem o perfil de famílias com renda de até R$ 522,50 por pessoa, ou até R$ 3.135 por família. Já o Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS) reúne os indivíduos que estão no mercado de trabalho formal. Há outras bases de dados mais amplas, mas que pouco dialogam entre si.
Na visão de especialistas, o Brasil precisará – no futuro – pensar em uma maneira de expandir sua base de dados sociais para não ser pego de surpresa e, ao mesmo tempo, melhorar a focalização de suas políticas. Uma versão simplificada do CadÚnico, que hoje tem um questionário complexo, com mais de 20 questões, poderia ser um começo.